Na caixa de e-mails de Karima Esmail, uma mãe norte-americana contava, desesperada, o seu problema: sua filha tem 18 anos e sonha em ser cabelereira, mas simplesmente não consegue. Apesar de ser inteligente e se comunicar perfeitamente, ela não sabe fazer cálculos simples, como dar um troco ou um desconto, muito menos estimar proporção, misturar produtos químicos e xampus na medida correta para pintar cabelos ou fazer tratamentos capilares. A jovem não consegue lidar com conceitos numéricos porque, agora sua mãe sabe, tem discalculia.
“A mãe dela me dizia: ‘onde foi que eu errei? Eu quero que ela volte e aprenda tudo do zero’. Imagina quanto sofrimento e quanta limitação essa menina já não teve que passar na vida?”, pergunta Esmail, engenheira britânica que vem desenvolvendo, desde 2008, o Dynamo Maths, um software para ajudar crianças e jovens com esse problema e que já foi adotado por mais de 4.000 escolas inglesas.
Dividido em quatro níveis e com 240 módulos ao todo, as atividades coloridas, dinâmicas e com estímulos auditivos começam tentando ajudar a criança a identificar padrões, ligar o “nome” do número à sua representação gráfica e ensinar os princípios das operações matemáticas básicas. As etapas do conhecimento matemático são construídas pouco a pouco, de forma que a plataforma, nos níveis mais avançados, trabalha pontos que são claramente importantes para a vida cotidiana, como ver a hora em relógio de ponteiro e entender o conceito de frações.
Cada movimento da criança fica registrado e é acessível aos profissionais que acompanham seu desenvolvimento, bem ao estilo adaptive learning. Os relatórios individuais gerados orientam as atividades que o professor pode fazer com os alunos. Os pais também podem conferir como o filho tem evoluído em cada tópico e dar o suporte necessário de casa.
Além de estarem disponíveis eletronicamente, os módulos estão também em PDF e podem ser impressos para que os jogos sejam trabalhados cara a cara entre criança e adulto, sem o intermédio de um computador. Quando um aluno aprende padrões de figuras geométricas, por exemplo, círculo, quadrado e retângulo podem ser impressos, recortados e, a partir de uma cartolina, ele faz manualmente a atividade presente no ambiente on-line. O programa deu tão certo ao ser aplicado individualmente no contraturno com alunos em dificuldades que, em muitas escolas, passou a ser usado também por crianças sem discalculia. Confira a demonstração gratuita e, abaixo, uma das telas da plataforma.
A ideia de criar uma ferramenta que ajudasse no numeramento das crianças surgiu quando Karima, então trabalhando com engenharia, precisou ajudar sua filha de 7 anos numa prova. Ela percebeu que os professores estavam muito pouco preparados para a alfabetização numérica. “As pessoas não dão a atenção que o numeramento precisa. É ele que dá as primeiras conexões com o mundo. As crianças precisam entender receitas, ver as horas no relógio, fazer contas, viajar, entender quando o ônibus vai passar”, diz Kalima. Essa dificuldade, que no Reino Unido afeta em média duas crianças por sala de aula, ainda é muito mal percebida pela sociedade e nem os profissionais da educação estão preparados para lidar com ela, diz a especialista.
Monica Weinstein, mãe de uma jovem de 18 anos que tem discalculia e diretora do IABCD, instituto que cuida de crianças com transtorno de aprendizagem, concorda. Ela conta que sua filha tinha dificuldades permanentes com números e que, desde que a menina tinha seis anos, a família vinha buscando entender o que acontecia. A resposta, diz Monica, veio da própria menina, depois de muita procura especializada. “Foram muitos especialistas ao longo de muitos anos. Eles enxergavam dificuldades específicas, mas não fechavam o quadro da discalculia. Aos 13 anos, assistindo um documentário da BBC sobre transtornos de aprendizagem, minha filha fez seu próprio diagnóstico.”
Mesmo que haja acompanhamento e intervenção, os conteúdos de ensino médio são muito difíceis para quem tem discalculia. Tem de haver um acompanhamento intensivo e customizado para que exista uma evolução nos conteúdos
Com toda essa despreparo até para entender que aquela dificuldade não é preguiça, o aluno é estigmatizado por professores e colegas. “Crianças que vão mal em matemática normalmente sofrem de ansiedade porque percebem que seus colegas são muito mais rápidos nas atividades”, afirma Karima, mostrando a cópia de um exercício feito por um aluno discalcúlico. Ele não conseguia completar as operações matemáticas mais simples e seu professor, ao corrigir a atividade, marcou à caneta todos os erros e sugeriu que ele estudasse mais.
Diferentemente de uma simples dificuldade em matemática, a discalculia é um transtorno neurológico que afeta a vida cotidiana das pessoas e suas causas não foram completamente compreendidas pela ciência. Também não há um tratamento correto nem remédio para tratar da doença, ressalta Karima, o que acaba aumentando a importância do papel articulado entre famílias e escola. E, claro, quanto mais cedo a condição for identificada, melhor.
Monica ressalta que, quanto mais complexos os assuntos da matemática vão ficando, maior é o desafio para o aluno. “Mesmo que haja acompanhamento e intervenção, os conteúdos de ensino médio são muito difíceis para quem tem discalculia. Tem de haver um acompanhamento intensivo e customizado para que exista uma evolução nos conteúdos da aprendizagem matemática. Por isso é muito importante que o diagnóstico seja feito precocemente”, afirma.
Se o assunto ainda é tabu e pouco estudado no Reino Unido, o panorama não é nada diferente no Brasil. Não há números exatos de quantas crianças sofram com a doença no país, mas estima-se, que cerca de 6% da população tenham algum tipo de deficiência de aprendizagem – discalculia, dislexia, déficit de atenção ou outras.
Fonte: PORVIR
Nenhum comentário:
Postar um comentário